A MOEDA DE ANDALUZIA
Lembro de uma terça-feira triste,
chuvosa e silenciosa. Às vezes quando não sabemos o que dizer é melhor não
falar nada. Naquele dia parecia que todos seguiam essa regra à risca. Essa
lembrança tem mais ou menos uns dois anos, foi o dia em que meu avô Jorge
morreu, mesmo tomando tantos antibióticos. Foi ele quem sempre cuidou de mim
quando meus pais não podiam, me ensinou a andar de bicicleta e me deu o
primeiro gole de cerveja. Que minha mãe não saiba disso. Ele foi o melhor avô
do mundo e me deixou em seus 87 anos. Na verdade, ele estava bem, mas de
repente seu coração parou, foi velhice mesmo.
De
vez em quando a saudade que sinto dele toma conta do meu dia, hoje é um desses
dias. O que sempre me acalma é pegar a velha caixinha de música que ele me deu
de presente um pouco antes de morrer. A caixinha é dessas com manivelas ao lado
que toca um trechinho de alguma canção. Sempre a toco e sinto a presença dele
de alguma maneira. A minha caixinha musical toca um trecho de uma clássica
tourada espanhola.
O
som dá uma certa adrenalina e me faz sentir vivo, apesar de eu ser
completamente contra as touradas e não apoiar maus tratos aos animais. Mas a
música, ah, a música! Fecho os olhos e posso me sentir em Granada, cidade do meu
avô Jorge, o qual até hoje não consigo pronunciar como os espanhóis falam, algo
como “Ror-rre”. Isso não entra a minha cabeça.
Como
um vício, não consigo parar de girar a pequena manivela e preencher meu quarto
com aquele som animador e tenso ao mesmo tempo. Enquanto sigo imaginando a
história por trás da caixinha, o telefone toca e me assusta. A caixinha cai no
chão e se desmonta. Desespero. Lágrimas.
—
Alô!
—
Bom dia! Aqui é a Lucilene do Banco das Américas, gostaria de falar com o
senhor Matheus...
Tu-tu-tu-tu.
Eu
não acredito que além de me assustar e me fazer derrubar minha relíquia, era só
o banco que queria falar comigo. Encerro sem ao menos dizer uma palavra e em
seguida desligo o telefone.
A
caixinha se rompeu na lateral e está um pouco torta. Eu tive medo de pegar de
qualquer jeito e estragar mais, mas eu precisava arrumar. Ao pegar a pequena
caixa percebo um barulho de algo solto dentro dela e resolvo investigar para
ver como eu deveria consertar aquela peça. Surpresa.
Vejo
uma moeda dentro da caixinha e tenho certeza que não fazia parte do maquinário.
A moeda dourada é do tamanho de um real, mais ou menos, e nela um desenho de
uma arena de tourada, minimamente detalhada, é de encher os olhos. Na parte de
trás, há uma frase que diz: “Moneda de Andalucía”.
Acho
curioso porque é uma moeda completamente diferente de tudo que eu já tinha
visto. Parece ouro, talvez seja. Eu preciso contar a alguém, mas ao mesmo tempo
tenho medo de que me roubem. Faço o que qualquer um faria nessa situação. Entro
em um site de busca e pesquiso sobre a tal moeda de Andaluzia.
O
site me levou a outros sites e blogs. Juntando várias informações, descubro que
há muitos anos atrás, quando meu avô ainda nem era nascido, tinha uma lenda
nessa região da Espanha. A lenda dizia que havia uma moeda de ouro, chamada Moneda de Andalucía, que foi perdida
pelo antigo rei na região da cidade de Granada.
Quem
estivesse em poder da moeda poderia escolher um dom para toda a vida. Não
poderia mudar sua escolha, e perderia o poder, caso não estivesse mais com a
tão procurada moeda. No entanto, era necessário seguir uma regra simples para
que o detentor da moeda tivesse de fato direito a esta regalia. O pedido
deveria ser feito de coração e não poderia prejudicar ninguém, caso contrário
algo terrível poderia acontecer. Dizem que o rei se suicidou após perder a
valiosa moeda.
Para
fazer o pedido, é necessário colocar a moeda contra o sol e desejar enquanto
olha para ela. Sendo sincero, tudo isso mais parece um conto de fadas do que
qualquer outra coisa, mas vai que...
Com
os olhos quase fechando devido a luz forte do sol, comecei a falar:
—
Eu desejo ter o dom da ressurreição.
Assim
que eu termino de falar aquelas palavras, magicamente a moeda pula das minhas
mãos e eu saí correndo para pegar. Eu praticamente não enxergo, só vejo um
clarão perante os olhos. Como meu quintal não é tão grande, não é difícil
encontrá-la. A guardo em meu bolso e assim será daqui em diante.
Pego
o carro e vou até o cemitério onde meu avô está enterrado. De tudo que eu quero
na minha vida, o que eu desejo mais que tudo é que meu avô esteja aqui de novo
para me aconselhar e me dar o melhor abraço do mundo, como ele sempre fazia.
Vou andando até o seu túmulo. O cemitério está vazio, o que não é de se
espantar em um dia de semana à tarde. Pelas estreitas ruazinhas cimentadas caminho
cada vez mais rápido na esperança de realmente ter ganho o poder da moeda.
Ao
chegar em frente ao túmulo de minha família, vejo a foto do meu avô. Ele está
sorrindo e me lembro de como era gostoso ouvir suas histórias. Pego a moeda em
meu bolso e mentalizo o vovô vivo de novo.
Um
barulho estranho começa dentro da sepultura. Talvez, apenas talvez eu não
esteja pronto para que a lenda seja verdadeira. Um leve desespero arrepia meus
braços. Eu quero que seja verdade, mas acho que não estivou preparado. O
barulho só aumenta e vejo a porta do túmulo se abrir. Eu paraliso, não consigo
correr e nem pensar. Minha boca está seca e meu cabelo suado. O cheiro da morte
invade o ambiente.
— Pelo jeito você encontrou a moeda que deixei escondida! Esse é o meu garoto. — Disse o vô Jorge enquanto sai de seu túmulo como se estivesse acordando de um longo sono.
— Vovô! — Exclamo desacreditado.
Parece
mentira, é surreal. De fato a moeda tem poder e eu consegui trazer meu avô de
volta. Eu não posso estar mais feliz.
— Dá cá um abraço no seu velho! — Chama Jorge enquanto estende os braços para mim.
Com
a emoção controlando o momento, parto para o abraço e sequer noto que meu avô
já não tem mais carne. Na verdade alguns pedaços de pele e músculos ainda
existem, mas estão em decomposição. Olhando em seu rosto posso ver algumas
larvas passeando em suas fossas nasais e isso me fez vomitar.
—
Não seja patife, moleque, vamos para casa, estou com saudade de todos!
Coloco
o vovô no carro e o levo para casa. Quando chego, minha mãe que era sua filha,
desmaia. Eu paraliso com a cena. Meu pai em socorro aparece, mas cai junto a
ela. Apenas consigo vomitar. O cheiro é impossível de se respirar. Vovô é o
único que sorri com seu crânio exposto.
Os
dias vão passando e o morto-vivo se comporta como se estivesse no auge dos seus
20 anos. Após explicar aos meus pais o que aconteceu, todos tentam digerir a
situação e agir com a menor repulsa possível, o que é inconcebível. As visitas
estão proibidas, comentar sobre o ocorrido com qualquer pessoa também, e assim
levamos. Ninguém mais se fala em casa e todos parece estar mais próximos da
morte a cada dia. Era para ser uma alegria a volta do vô.
Algumas
semanas se passam, e já muito fraco, entendo que eu fracassei. Campainhas e
celulares tocam, mas ninguém atende. Eu não previ que trazendo meu querido avô
de volta, ele traria consigo bactérias e doenças que infectariam toda minha
família. Vejo um a um morrer em casa. Não posso chamar ajuda e tampouco tenho
forças para isso. Eu serei o próximo.
Jogado
no chão sem forças para nada, vejo meu avô perambulando pela casa, morbidamente
feliz. Ele não é mais o mesmo, apenas vive com a ideia de felicidade. Seguro a
moeda em minha mão e a deixo cair de propósito. Eu achei que a luz do brilho do
ouro salvaria minhas angústias e o exemplo de homem que eu tinha. Mas agora,
pelo meu egoísmo, prejudiquei a todos que estavam vivos, não os protegi e agora
é minha vez de ver a luz.
Bruno Lopez
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