O PORTA-RETRATOS
Eu estava vendo o velho porta-retratos que fica em cima do piano. Há meses, eu não me sentava ali, abria a tampa do
teclado, fechava os olhos e sentia a vibração da música tomar conta de mim.
Será que eu ainda sabia tocar?
Comecei a dedilhar, ainda tentando não
ver. Pééém. Com certeza era um ré; continuei a martelar aquelas teclas mágicas,
que juntas, transformavam qualquer coisa em um acontecimento, davam a emoção
ideal para cada momento. Viajando pelo fá, depois um si e cheguei em um dó, que
de fato, dava dó. Desafinado como minha avó, quando cantava no chuveiro, que
Deus a tenha. A velhinha era um amor, mas cantava mal que só ouvindo...
Vai ser preciso chamar alguém para afinar o
antigo piano, que papai deixou para mim. Lembrei dele tocando com tanta
empolgação, essa era sua vida, literalmente. Pianista de mão cheia, era
contratado de um famoso programa de TV. Tocava na banda principal, e vez ou
outra, fazia um solo de encher o coração de quem ouvia. Era muito amado por
todos, aqui em casa e também pelos telespectadores. Me recordo de receber
muitas cartas e ligações, ele era de fato, popular, e graças a isso, fez muito
sucesso com seu trabalho e sua arte lhe rendeu muito dinheiro.
Mesmo com toda sua fama, ele nunca
deixou de lado a família. Era muito atencioso com todos nós, e comigo, o melhor
pai do mundo. Todos o chamavam de Pepe Reis, mas para mim, era Pepei, uma
brincadeira nossa que mesclava a palavra papai com o nome dele. Ele era meu e eu era
dele, parceria incorruptível, amor eterno e paternal, insubstituível, meu
herói, melhor amigo, meu clichê favorito.
Como já era de se imaginar, e até mesmo
se esperar, ele um dia me abandonou. Uma doença, vários tratamentos e muitos
corações partidos. Quando já não havia mais o que fazer, eu ficava deitado com
ele na cama do hospital, cantando as notas da minha canção favorita, a qual ele
compôs.
Mesmo sem saber cantar, devo ter
herdado esse “dom” de minha amada vovó, eu cantarolava e ele sorria, foi assim até
ele nos deixar. Triste foi pouco, eu fiquei desolado. O tempo passou, como de
costume, e nossa mente vai se recuperando dos traumas, aos poucos. Bem devagar,
em alguns casos. Anos se passaram, mas a inspiração
de Pepei em sua obra prima sempre ficou intacta. O porta-retratos, que sempre ficou sobre o piano de
cauda, inclusive nos programas que ele fazia na televisão, tinha a
minha foto abraçado a ele.
Foto antiga, dessas reveladas, que sem
querer, saiu com um pedaço do dedo na lente. Eu ainda era criança e sentava em
seu colo, enquanto tentava alcançar as teclas. Ele me ensinou a tocar. Claro que
nunca tive o talento dele, mas eu sabia me virar.
Segurei o porta-retratos, uma lágrima
escorreu. Olhei para cima, meio que tentando me conter, admirei novamente
aquele instante do passado. Por pura “xeretice”, decidi abrir a portinha de trás
do objeto. Para minha surpresa, uma folha pautada, e já amarelada, estava
dobrada lá dentro. Com cuidado, abri e haviam notas desenhadas, pausas e
repetições. No título estava escrito: “Tenha dó, Pepei”.
Impossível não chorar. Quando criança, eu sempre falava aquela frase, achava graça de alguma maneira, era minha nota
preferida, e eu queria que qualquer música tivesse dó.
Dó, lá, dó, sol, dó, fá, dó, sol...
Dó, lá, dó, sol, dó, mi, ré, dó...
Ele colocou a nota dó, antes de quase
todas as notas, e ficou tão linda... Foi para mim, claramente. Travei a tal portinha,
devolvi sobre o piano, olhei mais uma vez, fechei os olhos, respirei fundo, e como
se estivesse voltado ao tempo, comecei a tocar a nova música, mas em minha
mente se passavam cenas de diversos lugares, eu podia ver um papel, canetas,
lápis, estúdios, praças, um quarto e até um restaurante.
Entendi que em qualquer lugar, eu
estava com meu pai, mesmo quando distante. Ele compôs, para mim, cada nota da
saudade e do carinho que sentia.
Não consegui me segurar, parei de
tocar e chorei para valer. Minha esposa chegou, e com um sorriso diferente, me
entregou um presente e disse:
— Benício, comprei um novo porta-retratos para
colocar junto a este sobre o piano.
APROVEITE PARA OUVIR A MÚSICA
“Tenha dó, Pepei”
Bruno Lopez
Amo seus textos, parabéns
ResponderExcluirMuito obrigado... sua presença por aqui é sempre bem-vinda <3
ExcluirAdorei!! A música, realmente, é a maior fonte de lembranças.
ResponderExcluirParabéns!
Obrigado!! Música sempre está presente em nossas vidas <3
ExcluirAmei ❤️
ResponderExcluirObrigado pelo carinho <3
ExcluirTexto tocante
ResponderExcluirQue bom que gostou! Fico feliz <3
ExcluirQue linda. A música nos conecta <3
ResponderExcluirObrigado! Música é vida...
ExcluirQue final surpreendente!...Uma música !?..Amei!...Por essa não esperava mesmo!...Parabéns, querido!...🤩❤🥰🎶🎵🎹🙌💋💋
ResponderExcluirObrigado Ruth, pelo carinho de sempre! Que bom que gostou, fico muito feliz <3
ExcluirAh que conto emocionante que inspiração
ResponderExcluirRealmente muito bom
Viver também é recordar
Obrigado :)
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