SUICÍDIO
Eu estava ali, pronta para tudo.
Sem nunca reclamar, eu esperava ser escolhida. Mesmo sabendo que existiam
outras opções, talvez até melhores do que eu. Mas, por muito tempo, o
importante era não desistir. Ficava lá, sem perder a pose, mão na cintura,
porte de relíquia, mostrando tudo o que eu tinha a oferecer. Ainda assim, dias
se passavam, diversos olhos me encaravam, alguns até indecisos se seria eu ou
outra a escolhida, mas minha parceira sempre acabava vencendo a disputa, mesmo
quase tão velha quanto eu.
Como em uma vitrine, eu torcia
para chamar mais a atenção do meu público, que certamente gostava mais das
novidades. Eu era simples, de fato, mas creio que os clássicos nunca perdem seu
valor... Eu combino com tudo, me adapto, sou versátil, por que, ainda assim,
sou a última opção? Quando foi que tornei descartável, só mais uma, um peso
morto?
Talvez aqui não seja mais o meu
lugar. De algum modo, eu posso ter vencido um prazo de validade imaginário;
será a minha hora de aposentar? Se não posso mais servir a ninguém, tomar
diversas duchas por dia, deixar que cuidem de mim para ficar toda lisinha e nem
sequer experimentar novos sabores, deve ser mesmo a hora de parar.
É muito difícil assumir que
aquilo que sempre amei fazer já não serve mais, ou confessar que não agrado a
mais ninguém. O tempo passa e tudo muda; nossa aparência, o brilho, e ao que
parece, nossa utilidade. Sei que tenho uns arranhões, já não sou tão imponente
como antes e nem reluzo tanto como antes, mas sei que ainda sou muito boa no
que faço.
Se infelizmente já não atendo
mais às expectativas dos outros, deixarei de me humilhar, de aguardar, de me
decepcionar cada vez que tenho uma nova chance. Agora chega! Hoje à tarde, ao
meu lado, uma outra velha milagrosamente foi escolhida. Quando voltou ao nosso
armário, nos entreolhamos, e sem falar nada, entendemos o que deveria ser
feito.
O espaço era apertado, mas
conseguimos nos enroscar. Qualquer movimento despercebido daria um rumo
diferente à nossa vida. A garotinha desatenta, sem soltar do celular, puxou
nosso amigo novato e nem mesmo olhou para nós. O movimento foi muito rápido,
talvez um ou dois segundos. Pegou, arrastou e caímos as duas no chão. Pires,
nosso mais novo amigo estava salvo nas mãos de Maria Clara. Já rachada pelo
piso frio da cozinha, estava eu, quebrada. Já rabiscada em pedaços, ao meu lado,
e misturada aos meus cacos, minha amiga se desfez.
Brincar com as palavras é um processo lúdico e prazeroso. Você o fez com maestria nesse conto, Bruno. Folgo em dizer que acompanho um verdadeiro artífice da palavra. Sobre a relação que há entre o título e o desfecho, confesso que me remeteu à literatura Rodrigueana. Por falar em lúdico, sempre bom ter um Nelson entre nós!😉
ResponderExcluirAh, mas que honra ler isso!!! Obrigado pelo carinho.
ExcluirAdorei! Me senti no cenário da Bela e a Fera.
ResponderExcluirQue bom, obrigado rs
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