BINOCLINHO


 

Eu estava atarefado arrumando mil e uma coisas na casa enquanto as crianças brincavam na sala. Trabalhar remotamente com o filho do vizinho brincando com o seu nas férias da escola, administrar as refeições, manter tudo em ordem e ainda ter sanidade mental para tudo isso sozinho, não é nada fácil.

Concentrado na porta da geladeira, pensando se iria descongelar o frango ou a maminha para o jantar, me deparei com um das centenas de perguntas dos meninos.

— Pai, o que é isso?

Na fração de segundo em que olhei para a mão de Henrique, parecia que eu tinha paralisado. Ao olhar aquele objeto tão antigo, imediatamente comecei a lembrar de como aquilo era mágico. O “binoclinho”, como chamávamos, era na verdade um antigo monóculo, onde dentro se via a foto em tamanho aumentado. O pequeno objeto verde musgo era um símbolo dos momentos mais alegres da minha infância.

Que saudade! Nem os velhos álbuns de fotos eram mais abertos. Tudo digitalizou, ficou mais prático e as fotos se tornaram algo tão comum que passam despercebidas, mas quando eu era moleque, não era bem assim.

Como éramos pobres, meu pai tinha apenas dois monóculos. Ele guardava na parte de cima da estante para que eu e minha irmã não ficássemos mexendo. Mas sempre que pedíamos, ele deixava ver. A sensação de fechar um olho e encaixar o outro no minúsculo visor era maravilhosa. A foto que ficava dentro ganhava vida e ampliava de tamanho. Atrás daquela lente, um mundo novo ganhava vida, mesmo que estando tudo parado. A gente ria, brigava para olhar mais uma vez, tentava ver ao mesmo tempo e ouvia as histórias do papai.

Na parte de trás, tinha um fundo branco leitoso removível. Era por ali que se trocava a fotografia, e também o local onde devíamos direcionar para a luz para ver com clareza a imagem. Todos os momentos ficaram marcados. Enquanto que víamos as fotos, perguntávamos sem parar sobre o dia que foi tirada e como era possível caber alguém ali dentro, se era tudo tão pequeno... Aquilo era mágico. Lembro que não existiam problemas naquela hora, não haviam mágoas nem cansaço, tinham apenas boas risadas e a união de todos em casa.

Ainda com a geladeira aberta e o pequeno Rique esperando a resposta, me dei conta que estava sorrindo. Tirei o frango do refrigerador e coloquei na pia, ansioso para ver aquelas fotos.

— Rique, Gabriel, venham aqui! Vou mostrar uma coisa bem legal... — Falei os convidando a conhecer o “binoclinho”.

Sentamos no tapete da sala enquanto tocava uma música lenta na rádio. Os meninos ficaram concentrados e encantados com a descoberta. Ao me verem olhar lá dentro, queriam a todo custo ver também. Os dois monóculos que estavam perdidos há anos naquela gaveta, ganharam vida e trouxeram boas memórias.

Como uma homenagem àqueles que já não estavam mais entre nós, contei cada detalhe dos retratos, tudo que eu podia lembrar dos momentos em que foram tirados, como era antigamente, e assim, mantive viva a tradição da família. Não era bem uma tradição, mas podia começar a ser, com certeza devia.

Por mais que ainda existissem momentos estressantes, dias tristes, vontade de fugir, desejo de amar cada vez mais a tudo e a todos, sempre vamos ter os “binoclinhos” para nos unir.

Bruno Lopez

Comentários

  1. Era muito divertido, momentos em q se reunia para ver foto 🥰

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  2. Em minha casa tinham muitos, meu pai de fotógrafo e se a pessoa não pagava fica lá, fotos de pessoas q não conhecíamos 😊

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    1. Nossa, que legal! Deve ser o máximo tentar adivinhar que eram...

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  3. Que lindo esse texto! Eu tenho um binoclinho especial "eu e meu pai".

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    1. Obrigado por compartilhar... essas coisas são mesmo especiais :)

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  4. Que lindo texto! Me traz boas memórias e lembranças.

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  5. Viajei no tempo, meu pai sempre mandava fazer qd íamos de férias na praia, tinha uma cadeira de madeira,"flutuante", que na verdade era uma prancha de isopor em cada pé e na decoração era uma bóia de isopor pintada de vermelha e azul, demostrando um ⛵ 💖💞🙏🏻

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    1. Ah... que divertido. Boas lembranças sempre nos enchem de emoção :)

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  6. Fantástico!...Muitas lembranças lindas dessa época!...Viajei no tempo!...Bjs, querido!...🥰❤🤩💋👏👏💋💋

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    1. Que gostoso isso... sempre bom lembrar do que nos fazia ou ainda faz bem <3

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  7. Adorei viajar pelas lentes da personagem. Não há abstração que resista, quando nossa memória se retroprojeta...Resta-nos então, o desafio de confiarmos que ela nos lembrará o que o tempo não deu conta de apagar.

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  8. Tenho um binoclinho...na praia de Santos...lá por volta de 1900guarana de rolhakkk

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